domingo, 14 de dezembro de 2008

A tutela cautelar e a ponderação de interesses

Acórdãos STA
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo: 0210/07

Data do Acordão: 10-05-2007

Tribunal: 1 SUBSECÇÃO DO CA

Relator: PAIS BORGES

Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR.
EVIDENTE PROCEDÊNCIA DA ACÇÃO.
PONDERAÇÃO.
INTERESSE PÚBLICO.
INTERESSE PESSOAL.
FORMAÇÃO DOS CONTRATOS.
PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE.

Sumário: I - Qualquer procedimento cautelar tem de possuir as características de instrumentalidade e de necessidade, isto é, deve apresentar-se como um meio de, prevenindo o periculum in mora, garantir antecipada e adequadamente que a hipotética procedência da acção principal não será vã e antes permitirá atingir, no todo ou em parte, os fins jurídicos e práticos por ela visados em última análise.
II - O juízo de adequação entre o procedimento cautelar e o processo principal – feito à luz da perspectiva assumida pelo requerente, isto é, aproximando e relacionando os pedidos que ele objectivamente formule nos dois meios processuais – é um juízo eminentemente formal, ainda que atento ao desenrolar provável dos acontecimentos, pelo que a sua realização prescinde de quaisquer análises sobre a viabilidade substantiva das pretensões enunciadas.
III - A letra do art. 120º, n.º 1, al. a) do CPTA sugere logo que o deferimento imediato do meio cautelar, aí previsto, há-de resultar de ilegalidades patentes e flagrantes, capazes de convencer primo conspectu, e sem necessidade de um laborioso discurso coadjuvante, da procedência da acção principal.
IV - Não deve ser adoptada a providência cautelar se, do confronto da provável gravidade dos interesses susceptíveis de serem lesados, e do juízo de ponderação que o tribunal deve empreender a tal respeito, dimana uma maior gravidade ou superioridade dos prejuízos resultantes da adopção da providência requerida, comparativamente com os que podem resultar da sua recusa.


Nº Convencional: JSTA00064173
Nº do Documento: SA1200705100210
Data de Entrada: 07-03-2007
Recorrente: A...
Recorrido 1: CM
Votação: UNANIMIDADE


Meio Processual: PROV CAUTELAR NÃO ESPEC.
Objecto: PROCEDIMENTO DE FORMAÇÃO DE CONTRATO PARA AQUISIÇÃO DE SERVIÇOS.
Decisão: INDEFERIMENTO.
Área Temática 1: DIR ADM CONT - MEIO PROC ACESSÓRIO.
Legislação Nacional: CPTA02 ART112 N1 ART116 ART120 N1 A B ART132 N6.
Jurisprudência Nacional: AC STA PROC19/06 DE 2006/04/27.


Aditamento:


Texto Integral
Texto Integral
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
I. “A..., LDA” interpôs no TAF de Lisboa, previamente à instauração do processo principal, nos termos dos arts. 114º, nº 1, al. a) e 132º do CPTA, uma providência cautelar dirigida contra o INSTITUTO DE GESTÃO INFORMÁTICA E FINANCEIRA DA SAÚDE (IGIF), em que pediu a suspensão do procedimento de formação de um contrato para aquisição de serviços de comunicações no âmbito da Rede Informática da Saúde – RIS (Concurso Público nº 2/2006 do IGIF), e a intimação do requerido IGIF a abster-se de praticar qualquer acto relativo àquele procedimento e de celebrar o contrato respectivo.
A requerente assinalou que o processo cautelar era dependência de uma futura acção administrativa especial de anulação do programa do concurso e do caderno de encargos ou, pelo menos, de alteração dos mesmos para os harmonizar com a lei.
E, de seguida, tratou longamente dos requisitos formais e substanciais da providência pedida, referindo que aqueles programa e caderno enfermavam de diversas ilegalidades manifestas e que a pretensão cautelar era, não apenas útil e adequada ao fim prosseguido no processo principal, como proporcionada em face dos interesses públicos e particulares afectados, sustentando que a não adopção da providência terá como consequência imediata “a impossibilidade de a Requerente e outras entidades apresentarem propostas viáveis no presente concurso”, ao passo que da respectiva adopção “não resultará para a Requerida qualquer prejuízo”.
O TAF de Lisboa declarou-se incompetente em razão do território, tendo o processo sido remetido ao TAF de Sintra, no qual, depois de se apurar que não havia contra-interessados, se procedeu à citação do IGIF.
O requerido deduziu oposição (fls. 143 e segs.), começando por invocar a sua ilegitimidade processual por falta de interesse próprio em contradizer e por preterição de um litisconsórcio necessário passivo.
Para tanto, referiu estar tão só incumbido de celebrar o contrato, já que a propulsão do procedimento radicaria em competências alheias: ou do Conselho de Ministros – que aprovara, através de Resolução, o programa do concurso e o caderno de encargos e nomeara o júri –, ou do Ministro da Saúde, ou do próprio júri do concurso.
De seguida, referiu não ocorrerem as ilegalidades – maxime as ilegalidades manifestas – apontadas no requerimento inicial, sustentando ainda que os danos causados pela adopção da providência seriam superiores aos resultantes da sua recusa e, por último, referiu que o meio cautelar não traz à requerente qualquer utilidade “face ao processo principal”.
A fls. 204 e segs., a requerente veio pedir o chamamento do Conselho de Ministros e do Ministério da Saúde, com o propósito de radicalmente suprir a ilegitimidade passiva invocada, acrescentando que, assim, o tribunal competente para conhecer da providência cautelar passava a ser o STA.
O IGIF disse não se opor ao requerido chamamento.
Pelo seu despacho de fls. 236 e ss., a Sr.ª Juíza começou por admitir o chamamento do Conselho de Ministros (representado pelo Primeiro-Ministro) e do Ministério da Saúde, e, de imediato, julgou o TAF de Sintra incompetente em razão da hierarquia para conhecer da providência cautelar, ordenando a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do art. 14º, nº 1 do CPTA.
Já neste Supremo, procedeu-se à citação dos chamados para deduzirem oposição ao pedido.
II. O Conselho de Ministros e o Ministério da Saúde deduziram oposição (fls. 258 e segs. e 272 e segs., respectivamente), sustentando ambos ser de fácil constatação que não ocorrem (muito menos de modo manifesto) as diversas ilegalidades apontadas pela requerente, reportadas à pretensa falta de clareza e precisão do programa de concurso e do caderno de encargos, à capacidade técnica exigida e à inexistência de opções de resposta por lotes, porquanto nenhuma obscuridade ou indefinição se pode razoavelmente imputar às referidas disposições concursais, designadamente às cláusulas que constituem a Parte II do Caderno de Encargos (arts. 24º e segs.), absolutamente claras e circunstanciadas no que respeita à descrição dos serviços postos a concurso e ao modo da respectiva prestação, bem como ao disposto no art. 8º do Programa do Concurso (exigência de elementos documentais aos concorrentes) e nos arts. 23º do Programa de Concurso e 5º do Caderno de Encargos (possibilidade de preferência legal pela divisão em lotes).
E, quanto à ponderação de interesses referida no art. 132º, n.º 6, do CPTA, sustentam que a Requerente não concretiza minimamente os danos que para si resultariam da recusa da providência, e que a suspensão das operações do concurso, com o consequente protelamento da conclusão do processo de optimização da gestão das infra-estruturas de telecomunicações e de suporte do IGIF, tornada premente por ter expirado em 2003 o protocolo com a ..., acarretará danos consideráveis para o interesse público, tendo em conta que a Rede de Informação da Saúde engloba actualmente mais de 2200 circuitos de dados distribuídos pelas várias instituições do Serviço Nacional de Saúde, constituindo “um ponto fulcral e vital de todo o sistema informático do Ministério da Saúde”, como se assinala no preâmbulo da Resolução do Conselho de Ministros nº 72/2006, de 8 de Junho.
( Fundamentação )
OS FACTOS
Considera-se assente a seguinte matéria de facto:
1. A requerente está licenciada como Prestador do Serviço Fixo de Telefone no território nacional, inserindo-se num grupo multinacional da área das telecomunicações e serviços de tecnologia de informática, tendo como objecto o estabelecimento, gestão e operações de redes e serviços de telecomunicações, serviços de Internet e actividades relacionadas (docs. de fls. 28 e 35);
2. Em 12.10.2006, foi publicado no Jornal Oficial da União Europeia o anúncio do Concurso Público nº 2/2006 do IGIF, para aquisição de serviços de comunicações no âmbito da Rede Informática da Saúde – RIS (doc. de fls. 45, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido);
3. Nos termos do art. 1º do Programa do Concurso e do art. 2º do Caderno de Encargos, o referido concurso tem por objecto a contratação pública relativa à prestação de Serviços de Outsourcing da infra-estrutura de Telecomunicações (docs. de fls. 51 e 75, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido);
4. O protocolo existente entre o IGIF e a ..., que fornecia o suporte à gestão das infraestruturas de telecomunicações da RIS, e que tinha como pressuposto a exclusividade de competência da ... para a prestação desse serviço, expirou em 2003.
O DIREITO
Fixados os factos relevantes, passemos então ao direito.
1) Vimos que o IGIF começou por excepcionar a sua ilegitimidade passiva. Para ser minimamente eficaz, esta excepção só poderia radicar num de dois antecedentes – ou na falta de um autêntico interesse do IGIF em contradizer, ou na ofensa de um litisconsórcio necessário passivo; e o IGIF abordou o assunto por essas duas perspectivas, assim almejando obter a sua absolvição da instância.
Mas é agora seguro que tal defesa não colhe.
O IGIF disse-se indiferente ao assunto discutido nos autos porque não estaria incumbido de propulsionar o procedimento administrativo em causa, mas admitindo expressamente que detinha “competência para a celebração do contrato” que finalizaria o procedimento concursal.
E, como uma das providências solicitadas consiste justamente em que o IGIF seja intimado a abster-se de celebrar o contrato, logo se conclui que ele tem afinal interesse em contradizer tal pretensão.
Contudo, a certeza de que o IGIF tinha interesse em contradizer ainda não resolvia de todo a questão da sua invocada ilegitimidade, pois continuava a ser possível que os demais pedidos cautelares reclamassem a presença obrigatória, no lado passivo do pleito, de outras entidades, pelo que a inobservância desse litisconsórcio necessário continuaria a gerar a sua ilegitimidade passiva.
Já vimos que o requerido IGIF também colocou o problema da sua ilegitimidade nesta última perspectiva; mas podemos desde já antecipar que o chamamento aos autos do Conselho de Ministros e do Ministério da Saúde afastou a possibilidade de êxito dessa excepção.
Antes do mais, é de salientar que o chamamento dessas entidades adquiriu nos autos a força de caso julgado formal; daí que tal chamamento já não possa ser discutido, apesar de ele se fundar na ideia, de duvidosa legalidade (cfr. o art. 116º do CPTA), de que é possível enxertar incidentes de intervenção de terceiros em procedimentos cautelares.
Seja como for, o chamamento realizado levou a que estejam agora no processo todas as entidades em que é reconhecível um interesse em contradizer.
Assim, e se porventura estivéssemos perante um caso de litisconsórcio necessário passivo – problema que deixamos em aberto, por desnecessidade óbvia da sua apreciação – teríamos de concluir pela sua actual observância, conclusão que determina inelutavelmente a improcedência da invocada excepção dilatória de ilegitimidade processual.
2) Resolvido o ponto anterior, é tempo de vermos se o presente meio cautelar merece obter êxito. A este propósito, são três as questões colocadas e discutidas nos autos: se a providência é, ou não, útil; se as ilegalidades fundantes da acção principal são, ou não, evidentes; e se a ponderação dos interesses em conflito reclama, ou não, as providências requeridas.
Vejamos então:
(i) Qualquer procedimento cautelar tem de possuir as características de instrumentalidade e de necessidade, isto é, deve apresentar-se como um meio de, prevenindo o periculum in mora, garantir antecipada e adequadamente que a hipotética procedência da acção principal não será vã e antes permitirá atingir, no todo ou em parte, os fins jurídicos e práticos por ela visados em última análise.
Na falta dessa essencial característica, cuja exigência se colhe do art. 112º, nº 1 do CPTA, o procedimento cautelar carecerá totalmente de razão de ser e, por isso mesmo, não poderá ser deferido.
Como se afirmou, a este propósito, no Ac. de 27.04.2006 – Proc. 19/06:
«As providências cautelares destinam-se a obter uma regulação provisória dos interesses envolvidos num determinado litígio, podendo traduzir-se, consoante o seu conteúdo, em antecipar, a título provisório, a constituição de uma situação jurídica nova cuja obtenção se visa alcançar, a título definitivo, no processo principal (providências antecipatórias), ou a manutenção, a título provisório, de uma situação jurídica já existente, até que a situação seja definida, a título definitivo, no processo principal (providências conservatórias).
Essa regulação provisória deve ser instrumental, ou seja, deve traduzir-se, nos termos do art. 112º, nº 1, na adopção das providências cautelares que se mostrem “adequadas a assegurar a utilidade da sentença” a proferir no processo principal, evitando o chamado “periculum in mora”, isto é, o risco de que essa sentença, quando for proferida, já não dê resposta adequada às situações envolvidas no litígio, seja porque a evolução das circunstâncias durante a pendência do processo tornou a decisão totalmente inútil, seja, pelo menos, porque essa evolução conduziu à produção de danos dificilmente reparáveis.»
Ora, o IGIF asseverou que o presente meio cautelar é absolutamente inútil e destituído de instrumentalidade, isto é, que ele não serve quaisquer fins antecipatórios ou conservatórios, assunto que merece apreciação prioritária, pois que, se assim fosse, nenhum motivo haveria para que persistíssemos em analisar o fundo da providência.
Através deste procedimento cautelar, a requerente pretende obter a imediata paralisia do procedimento do concurso. Segundo o IGIF, este propósito denota logo a desnecessidade da providência, já que da suspensão do procedimento não resultará “qualquer obrigação por parte da entidade adjudicante no sentido de adjudicar qualquer contrato de fornecimento à requerente”.
Mas esta argumentação é frágil e não convence.
O juízo de adequação entre o procedimento cautelar e o processo principal faz-se à luz da perspectiva assumida pelo requerente, isto é, aproximando e relacionando os pedidos que ele objectivamente formule nos dois meios processuais.
Trata-se de um juízo eminentemente formal, ainda que atento ao desenrolar provável dos acontecimentos, pelo que a sua realização prescinde de quaisquer análises sobre a viabilidade substantiva das pretensões enunciadas.
In casu, a requerente almeja a suspensão do procedimento do concurso com o fito de evitar a situação de facto consumado que adviria da adjudicação, da contratação e, maxime, da prestação efectiva dos serviços por parte de um outro concorrente qualquer.
Com efeito, se o objecto do contrato se esgotasse completamente com essa prestação efectiva, a eventual procedência da acção principal não traria à aqui requerente a possibilidade de uma reintegração in natura da ordem jurídica violada, pois ela nunca poderia ser admitida a prestar serviços já adjudicados e realizados.
Deste modo, a presente providência destina-se a garantir à requerente a possibilidade de continuar a pugnar pela sua vitória no concurso e, sobretudo, pela obtenção dos efeitos práticos que daí normalmente derivam.
E essa mera possibilidade basta para fundamentar a legitimidade da requerente para propor a acção principal.
É que, se ela aí atacar a sua eventual exclusão do concurso ou se acometer a adjudicação por um qualquer vício de procedimento, a anulação que porventura consiga também nunca lhe garantirá que virá a ser a adjudicatária. Mas a falta dessa garantia, assim como não obsta à propositura da acção administrativa especial, também não pode impedir a instauração deste meio cautelar – já que ambos os processos (principal e dependente) existem para servir e tutelar os mesmos interesses últimos.
Deste modo, temos que, na hipótese de os termos do concurso serem suspensos, a ora requerente, por via do êxito que eventualmente obtenha no processo principal, manterá intactas as suas possibilidades de ganhar o concurso e, sobretudo, de fornecer os serviços em questão.
O que basta para que devamos concluir pela existência de um nexo de instrumentalidade entre o presente meio cautelar e a acção de que ele depende, ou seja, pela utilidade da providência.
(ii) Adquirida a certeza da adequação da providência ao processo principal, há agora que ver se ela merece deferimento.
A requerente começa por sustentar que as medidas cautelares devem ser adoptadas porque seria “evidente” a procedência da acção principal, advindo essa suposta evidência dos vários vícios que ela aponta ao programa do concurso e ao caderno de encargos.
O que significa que a requerente quer utilizar a via do art. 120º, n.º 1, al. a), do CPTA (aplicável por força do art. 132º, n.º 6, in initio) para obter o imediato deferimento do seu pedido cautelar.
Mas esta sua metodologia merece uma primeira observação.
O sobredito preceito preconiza a adopção imediata das providências cautelares “quando seja evidente a procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal”.
Mas, como decorre da etimologia, só pode ser considerado evidente aquilo que se constata de maneira imediata e manifesta. Há uma diferença irredutível entre captar imediatamente uma evidência e realizar uma demonstração tendente a captá-la, pois esta supõe o recurso a definições, divisões ou argumentações que possibilitem e suportem a captação de uma realidade que não era patente.
Portanto, a letra do dito art. 120º, n.º 1, al. a), sugere logo que o deferimento imediato do meio cautelar, aí previsto, há-de resultar de ilegalidades patentes e flagrantes, capazes de convencer primo conspectu, e sem necessidade de um laborioso discurso coadjuvante, da procedência da acção principal.
E compreende-se que assim seja, dadas a estrutura e a função dos procedimentos cautelares. Na verdade, estes são processos expeditos que, nos termos gerais do CPCivil, se bastam com a possibilidade de emissão de um juízo de probabilidade ou de verosimilhança acerca da existência do direito do requerente – e, no contencioso administrativo, esse direito (ou interesse) constitui, afinal, o reverso das ilegalidades invocáveis na acção principal.
Assim, nenhum cabimento tem a ideia (utilizada com estranha frequência), de que, nos procedimentos cautelares, se deverão apreciar com minúcia os vícios atribuídos à actividade administrativa – pois isso traria uma inadmissível duplicação do conhecimento dos vícios e feriria a natureza, o iter e as finalidades de tais procedimentos.
Deste modo, a tarefa que temos de empreender não consiste em pormenorizadamente analisar se existe algum dos múltiplos vícios que a ora requerente desde já imputa à conduta administrativa – esse é um assunto a resolver na acção administrativa especial –, mas tão só em apurar se algum desses vícios é “evidente”, ou seja, se de imediato se constata a ocorrência de qualquer um deles, por forma a que a procedência da pretensão principal desde já se apresente como ostensiva ou manifesta.
Ora, é tempo de sublinhar que nenhum dos vícios invocados no requerimento inicial se apresenta com força persuasiva que nos obrigue a considerá-lo como claramente existente. Se é possível que esses vícios existam, também podem não existir; e o juízo acerca da verificação deles há-de provir de uma averiguação e de um discurso tendentes a demonstrar se eles existem ou não – sendo certo que a mera necessidade desse discurso fundamentador traduz a negação imediata da evidência dos vícios, como referimos já.
Com efeito, não é notório ou flagrante que o programa do concurso e o caderno de encargos padeçam de uma “falta de clareza e precisão” (quanto aos vários itens em que a requerente desdobra a sua denúncia) determinantes de um êxito certo da acção principal.
Basta ver a oposição do IGIF, que rebateu pormenorizada e sustentadamente essas várias arguições, para se constatar que a verdade delas não é evidente.
E o mesmo sucede quanto aos vícios filiados na “capacidade técnica exigida” e na “inexistência de opções de resposta por lotes”, pois só se poderá concluir pela existência deles depois de realizadas várias actividades sucessivas – a interpretação das normas aplicáveis, a definição derradeira do sentido em que elas sejam constringentes, a subsequente comparação entre o que a Administração devia ter feito e o que ela realmente fez e, concluindo-se que houve desvio de legalidade na acção administrativa, o juízo sobre a sua magnitude e as respectivas consequências jurídicas.
Em suma, nenhum dos vícios que a requerente anuncia como causas da pretensão a formular nos autos principais se revela evidente – como resulta, aliás, do esforço que ela despendeu na tentativa de os demonstrar.
E este processo não é, como se afirmou já, a sede própria para se aferir da existência ou inexistência de vícios que se não revelem ostensivos ou evidentes, pois que a indagação a fazer nos procedimentos cautelares se resume a reconhecer se é manifesta ou não manifesta a procedência da pretensão formulada no processo principal (art. 120º, nº 1, als. a) e b) do CPTA, convocados pelo nº 6, in initio do art. 132º).
(iii) Assente que o deferimento deste pedido cautelar não pode fundar-se na mencionada evidência, resta ver se ele há-de decorrer da ponderação de interesses referida no art. 132º, n.º 6, do CPTA.
Deste juízo de ponderação dos “interesses susceptíveis de serem lesados” depende a concessão ou recusa da providência solicitada, a qual só será concedida se, ponderados tais interesses, e num juízo de probabilidade ex ante, o tribunal puder concluir que os danos que resultariam da recusa das providências são superiores aos que podem resultar da sua adopção.
Tarefa esta que nos reporta necessariamente para os elementos trazidos aos autos pelas partes, e que são a base fundamentadora desse juízo de probabilidade comparativo e valorativo a empreender pelo Tribunal.
Compulsando o requerimento inicial, constata-se que a requerente, a este propósito, invoca apenas que a não adopção das providências terá como consequência imediata a impossibilidade de a Requerente apresentar “propostas viáveis” no presente concurso, designadamente face à falta de clareza do Programa do Concurso e do Caderno de Encargos e aos requisitos de alegada capacidade técnica exigidos, ilegalidades que diz impeditivas do seu sucesso no concurso, com prejuízo da concorrência visada pelos concursos públicos.
E refere ainda que tem ao seu serviço um número significativo de trabalhadores qualificados, sendo essencial para a sua viabilidade económica a celebração de contratos desta dimensão, o que ficará prejudicado pela não possibilidade de concorrer a este tipo de concursos.
Temos de convir que estes “interesses susceptíveis de serem lesados” invocados pela requerente se afiguram, logo numa abordagem liminar, pouco valorosos.
Desde logo, porque perspectivam situações mais ou menos aleatórias e incertas, como é o caso da alusão à impossibilidade de apresentar “propostas viáveis” em virtude de pretensas ilegalidades dos instrumentos do concurso (este facto, aliás, seria sempre extensível a todos os candidatos), ou ainda com a alusão a um hipotético ganho de causa que a recorrente entende inviabilizado, quando refere que essas ilegalidades são impeditivas do seu “sucesso no concurso”.
Na verdade, ainda que esses prejuízos sejam perspectiváveis, importa sublinhar que a candidatura a um concurso público não garante a nenhum dos candidatos a sua vitória, ou seja, a sua escolha como adjudicatário da prestação dos serviços a concurso.
Pelo que a possibilidade de não ser o candidato escolhido faz naturalmente parte dos riscos normais e próprios da actividade empresarial e da normal decorrência da apreciação operada pelos júris nos procedimentos concursais.
E daí resulta necessariamente o pouco relevo resultante do último argumento invocado: o da salvaguarda da viabilidade económica da requerente, uma vez que não é normal que a viabilidade económica de qualquer empresa dependa, exclusiva ou primacialmente, da possibilidade de ganho de um determinado concurso público.
Por outro lado, e no que tange aos prejuízos para o interesse público que podem resultar da adopção das providências, as entidades requeridas invocam que a suspensão das operações do concurso, com o consequente protelamento da conclusão do processo de optimização da gestão das infra-estruturas de telecomunicações e de suporte do IGIF, tornada premente por ter expirado em 2003 o protocolo com a ..., acarretará forçosamente danos consideráveis para o interesse público, concretamente para a eficácia e qualidade da prestação de serviços de saúde às populações.
Tanto mais quanto é certo – como alertam os chamados Conselho de Ministros e Ministério da Saúde – que a Rede de Informação da Saúde engloba actualmente mais de 2200 circuitos de dados distribuídos pelas várias instituições do Serviço Nacional de Saúde, constituindo “um ponto fulcral e vital de todo o sistema informático do Ministério da Saúde”, como se assinala no preâmbulo da Resolução do Conselho de Ministros nº 72/2006, de 8 de Junho.
É por demais evidente que, do confronto da provável gravidade dos interesses susceptíveis de serem lesados, e do juízo de ponderação que o tribunal deve empreender a tal respeito, dimana uma maior gravidade ou superioridade dos prejuízos resultantes da adopção das providências requeridas, comparativamente com os que podem resultar da sua recusa.
Não só pela natureza dos interesses em causa, reportados à gestão do sistema de informatização dos serviços de saúde, que o mesmo é dizer, das diversas instituições integradas no Serviço Nacional de Saúde, como pelo universo das pessoas potencialmente afectadas pelo protelamento do concurso que tem por objecto, justamente, a optimização da gestão desses serviços.
O juízo de ponderação a efectuar nos termos do art. 132º, nº 6 do CPTA não pode, decisivamente, deixar de reconhecer preponderância a esses interesses, conferindo maior gravidade aos danos resultantes da adopção da providência, sendo certo ainda que não se vislumbra que a lesão desses interesses “possa ser evitada ou atenuada pela adopção de outras providências” (parte final do preceito).
( Decisão )
Com os fundamentos expostos, acordam em indeferir o pedido de concessão das providências.
Custas pela requerente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta.
Lisboa, 10 de Maio de 2007. – Pais Borges (relator) – Rui Botelho – Freitas Carvalho.

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