terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Acto administrativo de conteúdo negativo 2

Processo: 00277/04.2BEBRG

Secção: 1ª Secção - Contencioso Administrativo


Data do Acordão: 12/07/2005

Tribunal: TAF de Braga

Relator: Dr. João Beato Oliveira de Sousa

Descritores: ACÇÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE CONDENAÇÃO À PRÁTICA DE ACTO DEVIDO - INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL

Sumário: É de considerar inepta, por contradição entre o pedido e a causa de pedir, a petição inicial formulada numa acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido que culmina com o pedido de condenação da Administração a proferir a revogação do acto administrativo que resolveu o procedimento onde a autora interveio, sendo certo que este acto primário era susceptível de impugnação directa e que mediante a respectiva anulação judicial a interessada obteria a plena tutela dos direitos e interesses legítimos por si invocados.


Data de Entrada: 04/29/2004
Recorrente: M.
Recorrido 1: INFARMED
Recorrido 2: M.
Votação: Unanimidade


Meio Processual: Acção Administrativa Especial para Condenação à Prática de Acto Legalmente Devido - Rec. Jurisdicional


Aditamento:
Parecer Ministério Publico: Não emitiu parecer
1
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo:

Relatório

M… interpôs recurso da “sentença” (na realidade despacho porque incorpora uma decisão que não incide sobre o mérito da causa) do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que indeferiu liminarmente a petição inicial da acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido instaurada contra o Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED) com fundamento na existência de contradição entre o pedido e a causa de pedir.
A culminar a sua alegação de recurso, a Recorrente formulou as seguintes conclusões:
6.1° - Com a fundamentação da sentença o que se está a apreciar não é a compatibilidade entre a causa de pedir e o pedido, mas sim a legitimidade ou ilegitimidade da Autora, pelo que a ineptidão nunca poderia ancorar o seu fundamento na contradição entre o pedido e a causa de pedir, mas sim na ilegitimidade da Autora.
6.2° - Contudo, é o próprio Tribunal que acaba por reconhecer que a Autora tem legitimidade para intervir no procedimento administrativo para aí influenciar a decisão, quando diz que “a legitimidade desta iniciativa pode acolher apoio no disposto nos artigos 55° e 56° do Código de Procedimento Administrativo (CPA).
6.3º - Pelo que sob o ponto de vista da legitimidade a petição nunca poderia ser julgada inepta.
6.4° - Tendo em atenção a concreta causa de pedir e o pedido formulado na petição inicial, não se vê onde e como é que há conflito insuperável entre o pedido de condenação à prática de acto devido e a causa de pedir consubstanciada, em síntese, na recusa de decidir pretensão da requerente dirigida à Ré, isto é recusa da prática de acto legalmente devido.
6.5° - Exactamente porque nenhuma contradição insanável existe, o Tribunal a quo, na fundamentação da sua decisão de ineptidão da petição por contradição entre causa de pedir e o pedido formulado, não se refere sequer a essa contradição, não a revela, portanto, pelo que, sobre essa matéria, é a sentença absolutamente omissa.
6.6° - De facto, o único fundamento que o Tribunal a quo apresenta para sustentar tal contradição e a consequente ineptidão da petição dela decorrente é a legitimidade (ou ilegitimidade) da Autora para ser parte em procedimento administrativo, revelando deste modo, inequivocamente, que confunde contradição insanável entre o pedido e a causa de pedir e legitimidade (das partes).
6.7° - Assim, a sentença, ora recorrida, é, portanto, nula, não só porque não especifica os fundamentos de facto que justificam a decisão, como porque a sua fundamentação de direito - nulidade do processo por ineptidão da petição inicial fundada na contradição insanável entre o pedido e a causa de pedir - está em manifesta oposição com a sua fundamentação de facto.
6.8° - A sentença ora recorrida violou, por errada interpretação, as disposições da alínea b) do artigo 494° e, por errada aplicação, as disposições da alínea b) do n° 2 do artigo 193°, todos do Código de Processo Civil; violou, ainda, por errada aplicação, a disposição da alínea b) do artigo 668°, também do Cód. de Processo Civil, todos aplicáveis ex vi do artigo 1º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Os Recorridos INFARMED e M… apresentaram as contra alegações constantes dos autos.

Cumpre decidir
Verifica-se que a causa de pedir formulada na petição inicial assenta, em síntese, na alegação de que o local destinado à instalação da Farmácia Vieira e Brito distava menos de 500 metros da Farmácia da Recorrente e que o Réu não decidiu as diversas solicitações que pela Recorrente lhe foram endereçadas no sentido de não autorizar tal instalação naquele local.
Quanto a pedido é como segue:
«...deve o Tribunal pronunciar-se sobre a concreta pretensão da Autora, impondo à Ré o deferimento da pretensão da Autora e, em consequência, a revogação do acto de autorização da instalação da nova Farmácia Vieira e Brito ilegalmente praticado por violar a disposição da alínea b) do artigo 2º da Portaria 936-A/99, de 22 de Outubro, com a redacção que lhe é dada pela Portaria 1379/2002 de 22 de Outubro, por a prática desse acto ser o único legalmente devido.»
É útil transcrever integralmente o despacho recorrido:
«Nesta acção administrativa especial, de M…, com os demais sinais nos autos, contra Infarmed - Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento, pretende ela que o tribunal imponha, ao réu, a prática de alegado acto devido, a saber, a não autorização de instalação de uma farmácia por M… (M…, também identificada no processo), porque, alegadamente, tal farmácia se situa a menos de 500 metros daquela que a autora explora.
Para tanto, alega, em síntese, que dirigiu, ao réu, diversos requerimentos, a alertá-lo para aquela circunstância da proximidade das farmácias, não tendo obtido senão a informação de que deveria recorrer ao tribunal, por se presumir legal o acto administrativo por ele praticado.
Sendo o tribunal competente, cumpre apreciar.
A autora, tendo tido conhecimento do pedido de autorização deduzido pela M…, entendeu tentar influenciar o sentido da decisão a prolatar, dirigindo, aos serviços do Réu, diversos informações-requerimentos.
A legitimidade desta iniciativa pode acolher algum apoio no disposto nos artigos 55° e 56° do Código de Procedimento Administrativo (CPA).
De qualquer modo, interessado (ou parte, na terminologia do processo civil), no procedimento, é a requerente M…, como parece evidente, não tomando a autora tal posição, não obstante o seu interesse no desfecho do procedimento - ver, a propósito, o disposto no art. 64°.1 do CPA.
Significa isto que a autora não tem o direito de tentar modificar o objecto do procedimento, pugnando por que, em vez da pretensão da M…, seja apreciada a dela, autora, ou por que, sejam ambas apreciadas, o que, aliás, como parece evidente, é inútil, por isso que a decisão de uma delas (das pretensões) inutiliza a decisão da outra.
Acresce que a autora mostra ter conhecimento de que o procedimento foi já decidido.
Assim, não lhe resta senão obter informação precisa sobre a decisão (ver dito art. 64°), e impugná-la, visto que entende que ela a prejudica.
O pedido deduzido conflitua, pois, de modo inultrapassável, com a causa de pedir apresentada.
Assim, ao abrigo do disposto nos artigos 1° do CPTA e 234°-A.5 (DL 38/03, de 08.03), 193°.1 e 2.b), 493º.1 e 2, 494°.1.b) e 495° do CPC, declara-se a nulidade do processo, e indefere-se liminarmente a petição inicial.»
Questão prévia
Após a remessa dos autos a este Tribunal Central Administrativo Norte (cfr. fls.94) o relator notou que nesta espécie de acção, atento o artigo 81º CPTA, não existe em regra despacho liminar do juiz. E considerou ainda que tendo no entanto aquele despacho sido proferido, deveriam os réus ser citados para a acção e para o recurso, independentemente de se saber agora se o mesmo despacho deveria ou não ter sido emitido e das consequências que a sua eventual nulidade acarretaria para o processo.
Esta questão não é passível de conhecimento, por não integrar o objecto do recurso nem ter sido arguida oportunamente a correspondente nulidade processual nos termos do artigo 205º CPC. Com efeito, mesmo a admitir-se por necessidade de raciocínio a inadmissibilidade do indeferimento liminar não obstante ter sido suscitada a intervenção do juiz previamente à citação (cfr. fls. 55), não se trataria de nulidade de conhecimento oficioso, conforme previsão do artigo 202º CPC. Assim, há que considerar sanada a eventual irregularidade cometida.
Objecto do recurso
Há um manifesto encadeamento entre as conclusões formuladas, pelo que não se justifica a sua análise individualizada.
O que a Recorrente critica ao despacho recorrido, em primeiro plano, é fundamentar de forma incompreensível a ineptidão da petição na contradição entre a causa de pedir, sem revelar onde reside tal contradição. Com efeito, na tese da Recorrente, toda a fundamentação do despacho se ocupa com a demonstração da ilegitimidade da autora para ser parte no procedimento administrativo, revelando deste modo que o tribunal “confunde contradição insanável entre o pedido e a causa de pedir e legitimidade (das partes)”. Esta confusão seria ainda exacerbada pelo facto de noutro passo do mesmo despacho se reconhecer a legitimidade da autora para intervir no procedimento administrativo ao abrigo dos artigos 55º e 56º do CPA. Portanto, conclui a Recorrente, “sob o ponto de vista da legitimidade a petição nunca poderia ser julgada inepta”.
Analisando esta exposição, cumpre em primeiro lugar evitar a confusão entre legitimidade no procedimento e legitimidade no processo, sendo certo que no despacho recorrido não há a mínima sugestão relativamente a uma eventual ilegitimidade processual da autora.
No que se refere à legitimidade da autora, ora Recorrente, para intervir no procedimento administrativo tendente à instalação da Farmácia Vieira e Brito (autorização do INFARMED) afigura-se indiscutível, visto ser ela própria, alegadamente, titular de um direito que poderia vir a ser afectado pelo deferimento da pretensão formulada naquele procedimento.
Todavia, a lei – artigo 53º/1 CPA – distingue entre a legitimidade para iniciar o procedimento administrativo e para intervir nele. Ora, é fácil ver que a Recorrente nestas circunstâncias tinha legitimidade como interessada para intervir, como efectivamente interveio, no procedimento destinado à autorização de instalação da Farmácia Vieira e Brito, na qualidade de opositora à pretensão assim deduzida, mas não podia “expropriar” esse procedimento exigindo, como se diz no despacho recorrido, que aí fosse apreciada a sua pretensão em vez da pretensão da M…. A focagem deste ponto, a que acresce a menção de não restar à autora outra solução “senão obter informação precisa sobre a decisão...e impugná-la, visto que entende que ela a prejudica”, ilumina a ratio essencial da decisão recorrida: perante a existência de um acto impugnável (a autorização pelo INFARMED da instalação da Farmácia Vieira e Brito naquele local) cuja anulação em juízo salvaguardaria plenamente o direito ou interesse legítimo invocado pela autora, seria injustificável a pretensão desta em condenar a Administração à prática do pretenso acto devido que consistiria na revogação daquele acto primário. Por outras palavras, o objecto do procedimento não tinha que ser alterado ou desdobrado, uma vez que já contemplava indirectamente, mas também efectiva e plenamente, a pretensão da autora.
E este ponto de vista afigura-se correcto. Na verdade, o entendimento diverso pressuporia a consagração legal de uma opção facultativa ou sucessiva para tutela do mesmo direito subjectivo, em litígio emergente da mesma relação jurídica administrativa, entre os pedidos de “impugnação de actos administrativos” (artigo 50º e seguintes do CPTA) e de “condenação à prática de acto devido” (artigos 66º e seguintes). Ora, seria insólito que essa escolha a la carte estivesse na mente legislativa, quando a lei porfiou em regular os dois modelos de tutela judicial em Secções distintas.
Porque têm vocação distinta. Como expõem Aroso de Almeida e F. Cadilha (Comentário ao CPTA, Art. 51º, nota 8), a impugnação prevista nos artigos 50º e seguintes “é o modo de reacção adequado contra actos administrativos de conteúdo positivo, por parte de quem pretenda o restabelecimento da situação por eles alterada” enquanto “o modo adequado de reacção contra actos administrativos de conteúdo negativo é a dedução de um pedido de condenação à prática de acto administrativo”.
Mas a actuação da Administração tem que ser perspectivada na óptica do particular que iniciou o procedimento e por isso, como o INFARMED decidiu expressamente o procedimento com um acto de conteúdo positivo (autorizou a instalação da farmácia) não pode o opositor a tal pretensão (quer tenha ou não intervindo no procedimento) ficcionar – como se fosse ele a encabeçar a relação subjacente - que relevante era o “acto administrativo ilegalmente omitido ou recusado” simétrico, isto é, o “acto” que não deferiu a oposição manifestada ao pedido de autorização.
Curiosa é a forma como Vieira de Andrade (in A Justiça Administrativa, 7ª edição, pág. 226) antecipa do puro ponto de vista teórico a solução aqui preconizada, ao referir que “o artigo 67º parece exigir sempre um procedimento prévio, da iniciativa do interessado, em regra um requerimento dirigido ao órgão competente, com a pretensão de obter a prática de um acto administrativo”. Ou noutro passo (obra citada, pág. 228) quando sustenta que deve admitir-se o pedido de condenação à prática de acto devido mesmo nas hipóteses de indeferimento indirecto “quando a mera impugnação não seja suficiente para permitir uma satisfação integral dos direitos e interesses legalmente protegidos dos autores”.
Como se viu, no caso vertente o procedimento administrativo não foi da iniciativa da autora, mas a mera impugnação da respectiva decisão final permitiria inquestionavelmente a satisfação do seu interesse.
É certo que do ponto de vista formal/subjectivo da autora não haveria contradição entre a causa de pedir (direito a opor-se à instalação de uma farmácia localizada a menos de 500 metros) e o pedido (revogação do acto que autorizou tal instalação). Mas o ponto de vista legalmente relevante coincide em regra com o do particular que tem a iniciativa do procedimento e, nesta perspectiva, no caso em apreço não houve qualquer omissão ou recusa de acto pela Administração, pelo contrário, foi proferido o acto administrativo capaz de resolver de forma cabal (no sentido favorável ou desfavorável) todos os interesses que se jogavam no procedimento.
De resto, o direito processual tem o intuito prático de fazer corresponder o ser ao dever ser (garantir a certeza do direito) e, neste âmbito, seria caótico admitir sistematicamente o pedido de condenação da Administração a praticar, como actos devidos, actos de revogação de actos primário que eventualmente já não fossem susceptíveis de impugnação directa, por exemplo por ter transcorrido o prazo para o efeito.
No que respeita à nulidade da “sentença” invocada na conclusão 6.7º por falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão é patente a falta de razão da Recorrente. Por um lado, porque se trata de um despacho com incidência meramente formal/processual em que tudo se decide em face dos factos peticionados. Por outro lado, porque na mesma conclusão, contraditando-se a si própria, a Recorrente alega que a decisão “está em manifesta oposição com a sua fundamentação de facto”.
Finalmente, a solução preconizada em nada compromete a possibilidade de a Recorrente vir a juízo impugnar o acto administrativo proferido pelo INFARMED, depois de devidamente notificada, ficando por essa via garantida a tutela jurisdicional efectiva dos seus interesses legítimos e fragilizada a argumentação que se poderia desenvolver em detrimento do carácter formal da decisão obtida nestes autos.
Assim se conclui que a decisão não incorre na assacada violação das disposições legais mencionadas na conclusão 6.8º da alegação da Recorrente.
DECISÃO
Pelo exposto, considerando improcedentes todas as conclusões formuladas pela Recorrente, acordam em negar provimento ao recurso
Custas pela Recorrente.
Porto, 2005-12-07

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